absorver ruídos

2012-atual, proposição de escuta, escrita-desenho.
Absorver ruídos é uma proposição artística que realizo desde 2012 quando comecei a desenhar durante meus deslocamentos cotidianos, principalmente em ônibus.
É uma investigação na qual procuro relacionar processos e proposições de uma escuta porosa, que se disponibiliza aos ruídos do entorno, com possibilidades de semiabertura do corpo com os ruídos do entorno.
Entendo o ruído como interferência, sonora ou não, que produz rastro. Desenhar-escrever durante um deslocamento, pode mudar a maneira como o tempo corre no corpo, solicitar atenção às relações de organização-desorganização com o entorno e da coreografia que vai se desenhando a partir das negociações entre conduzir e se deixar levar por ele.
Os desenhos produzidos durante a proposição de "absorver ruídos" se desdobram em outras séries de desenho como “labareda labirinto” e “registrar o esforço de lembrar” e em outros materiais como publicações, lambes, serigrafias e etc.
caderno 25 (2025-2024)
14cm x 7cm, 30 pgs, nanquim sobre papel pólen
texto de arranque¹
Estar disponível para as interferências, pensar o uso que faço delas, como as incorporo ou deixo de incorporar no e pelo desenho. Ajustar o humor, negociar constantemente o quanto estou disposto a ser conduzido e o quanto estou disposto a conduzir. Redimensionar o que eu — acho que — gostaria de desenhar já que as interferências são inevitáveis. Desenhar dentro do ônibus em movimento deforma o entorno de dentro e, às vezes, dá embrulho no estômago - aproveitar a vertigem e evitar o refluxo.
Reorganizar constantemente as estruturas (óssea/muscular) do corpo. Trazer os ruídos de fundo pra frente. Decidir por quais apoios, quinas e encontros passam os ruídos, selecionar, editar, interpretar e transcrever pro papel. Deixar o rio passar. Palma da mão e cotovelos: apoiar o osso, soltar o músculo, abrir espaço para indefinições de contorno - descansar na pele das costas, cérebro macio.
Investigar formas de transferir cento e vinte quilômetros por hora para a ponta de uma nanquim de um milímetro de espessura. Considerar que os ruídos seguem ressoando depois do desenho e que, às vezes, eles só o atravessam. Rebobinar a caminhada, devolver todos os passos. Desenhar em deslocamento deforma o contorno do corpo - largar e carcar a mão.
Perceber pessoas tentando identificar o que estou desenhando. A moça sentada ao lado pede a caneta emprestada a outra abre uma marmita de arroz e depois abre um livro. Alguém esbarra no meu braço e pede desculpas. Um senhor acompanha o caminho dos meus olhos na paisagem. O ruído do ônibus embala o sono, ou o desenho, de alguém. O músico me usa pra fazer uma rima “Olha aqui o amigo, parece que é artista, mas pra desenhar dentro do ônibus tem que ser malabarista”.
Alcançar o espaço do entorno, a paisagem. O que está mais perto tende a se deslocar mais rápido e o que está mais longe mais devagar. Incorporar as distâncias e seus embaralhamentos. No deslocamento tudo escapa o tempo todo. Desistir de fechar figuras, saltar de um poste para uma montanha, de uma janela para um “com licença moço”, do detalhe de um parafuso para um letreiro. Um homem sobe no ônibus errado e desce no ponto seguinte. Sobrepor o ponto de partida com o ponto de chegada e tudo o que fica entre os dois. Desenhar em deslocamento deforma o entorno de fora - saltar próximo e saltar longe, não perder o ponto (nem subir no ônibus errado).
1. Texto de arranque é um fragmento da dissertação “absorver ruídos largar rastros” de Gabriel Villas Dissertação de elaborada junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do CEART-UDESC para obtenção de título de Mestre em Artes Visuais, na linha de pesquisa Processos Artísticos Contemporâneos